A seletividade alimentar na infância é provavelmente a principal queixa, direta ou indireta, de consultórios de pediatras e nutricionistas em todo o mundo.
Uma criança não comer bem ou não comer o esperado é um problema complexo para os familiares, e que se expande da casa para a escola e até mesmo para o convívio social.
As dificuldades alimentares, que vão desde um erro de interpretação dos pais ou profissionais de saúde sobre o quanto e como a criança deve comer, até a ocorrência de uma doença grave, física ou comportamental que modifica totalmente a ingestão de nutrientes, são um novo capítulo da ciência multiprofissional e multidisciplinar da área de saúde.
Casos cada vez mais complexos indicam que um novo enfoque deve ser considerado, com a participação de profissionais integrados e que também determinam um tratamento integrativo para ajudar crianças que conseguem driblar e manipular os pais, que por sua vez se veem desesperados com a falta de sucesso.
Quando a criança não come, não basta oferecer um estimulante de apetite, uma vitamina ou um conselho básico. Há a necessidade de um enfoque holístico que permita, inicialmente, um excelente diagnóstico clínico, do desenvolvimento, do ambiente familiar e escolar e do entorno social.
Por que a criança precisa comer?
A alimentação adequada é de fundamental importância durante toda a vida, pois contribui decisivamente para o crescimento, desenvolvimento fisiológico, desempenho e produtividade, assim como para a manutenção da saúde e do bem-estar.
As crianças precisam de um aporte equilibrado de nutrientes para possibilitar seu apropriado desenvolvimento cognitivo e psicomotor.
Porém, a comida não deve ser vista apenas como algo que satisfaz nossas necessidades vitais, mas também como um ato social, cultural, afetivo e coletivo.
Sabe-se que na comida estão presentes mais do que nutrientes em si, e que o gosto por alguns alimentos e a repulsa por outros são influenciados por questões sociais, econômicas, políticas e culturais.
Crianças aprendem a comer pelo sensorial, pegando, cheirando, olhando, amassando a comida. Põe na boca, cospe, ama hoje e odeia amanhã. É um passo de cada vez e quando a família percebe que cada etapa no processo de se alimentar é importante, dificilmente a criança será seletiva.
No mundo em que vivemos, há uma desconexão entre nosso centro de fome e saciedade, e muitas vezes não prestamos atenção nesse ato tão simples e ao mesmo tempo tão complexo que é o ato de se alimentar. Comer faz parte de muitos momentos do nosso dia, porém é importante que estejamos atentos aos sinais do nosso corpo e ao momento em que ingerimos os alimentos.
Principais cuidados que devem ser tomados para que possamos evitar recusas futuras:
- O manejo adequado da introdução alimentar a partir dos 6 meses de vida;
- O cuidado com a alimentação na primeira infância;
- Modelo parental - entender que o comportamento dos pais pode influenciar de forma positiva ou negativa a formação do comportamento alimentar;
- Como as crianças aprendem a comer em cada fase de sua aprendizagem.
A alimentação responsiva
A alimentação responsiva é uma etapa fundamental para a aprendizagem e alimentação. Comer é um ato aprendido desde a amamentação quando o bebê se auto regula e faz livre demanda do leite materno, até por volta de 6 a 7 anos.
Em cada fase ocorre uma progressão do comportamento alimentar (das habilidades de alimentação) e responsividade para bebês e cuidadores, conforme as mudanças no seu desenvolvimento motor, cognitivo e social.
Fatores como a proatividade do cuidador em cada fase, as habilidades e sinais da criança, os sinais de fome e saciedade, a responsabilidade do cuidador e o que a criança aprende em cada fase que está vão determinar essa progressão ou do comportamento.
Qual a idade em que mais ocorrem dificuldades alimentares?
É importante saber que as dificuldades alimentares são comuns em crianças pequenas desde o aleitamento materno e podem persistir por toda a infância, mas se bem conduzidas a maior parte dos quadros é leve, transitória e podem ser tratadas com sucesso.
Os lactentes podem apresentar oscilações de apetite e de preferências alimentares em determinados estágios da infância. Quando os pais não toleram os períodos de recusa alimentar e reagem de forma inadequada, essas alterações do comportamento alimentar podem transformar-se em dificuldades alimentares, ocorrendo de forma persistente e grave, a ponto de comprometer a relação dos pais com a criança e determinar mudanças na dinâmica das refeições e na rotina da família, alterar o crescimento físico e o desenvolvimento.
Conhecendo as dificuldades alimentares (DA)
O termo DA engloba qualquer quadro que afete negativamente o processo pelo qual os pais ou responsáveis fornecem alimento ou nutrição às crianças. Inclui:
Crianças com apetite limitado
Nesta categoria, há redução na quantidade da ingestão dos alimentos. Essas crianças variam desde as que estão comendo adequadamente, mas parecem comer muito pouco (percepção errônea dos pais), até as com doença orgânica evidente.
Crianças com ingestão seletiva
As crianças que são consideradas seletivas variam desde aquelas que estão se alimentando adequadamente para seu estágio de desenvolvimento (percepção errônea) até aversões sensoriais relacionadas a doenças orgânicas.
A neofobia que ocorre geralmente em crianças a partir de um ano de idade, é frequentemente mal interpretada pelos pais como seletividade inadequada. No entanto, trata-se de um comportamento normal que ocorre em crianças no final do primeiro ano de vida, atingindo um pico entre 18 e 24 meses e que se bem conduzida, resolve-se espontaneamente.
Criança com fobia alimentar
Qualquer experiência intensamente aversiva relacionada à alimentação pode causar medo e recusa alimentar. São descritos três padrões principais de fobia alimentar: o medo de se alimentar após um único evento traumático intenso, como a asfixia; o medo da alimentação da criança pequena que foi submetida a procedimentos orais invasivos e/ou dolorosos; e o medo de alimentação em crianças que usaram sonda enteral ou que perderam os marcos de alimentação, falta de experiência e/ou se sentem ameaçadas quando o alimento é introduzido por via oral.
Na maioria das situações, as DA têm vários fatores que desencadeiam seu aparecimento e a sua persistência. A interação entre a criança, a comida e a pessoa que a alimenta gera muitos riscos:
- casos em que a origem é orgânica e perdura, como distúrbios respiratórios que dificultam a mastigação e a deglutição;
- distúrbios gastrointestinais;
- alergias;
- alterações na motricidade orofacial que dificultam o bebê ou a criança de sugar, mastigar e deglutir;
- aspectos comportamentais;
- recusa inicial em aceitar novos alimentos;
- interpretação equivocada dos pais.
A DA pode ser caracterizada por queixas como seletividade alimentar (recusa ou predileção por cores, cheiros, sabores, texturas e consistências específicas), apetite limitado, fobia alimentar, entre outros.
Essas queixas podem acompanhar a criança em todas as circunstâncias nas quais a alimentação esteja envolvida (rotina escolar, familiar ou de lazer), com possibilidade de implicações no crescimento e desenvolvimento, quando persistentes e não acompanhadas.
Pode ser uma situação passageira ou se apresentar até a vida adulta, surgindo em diferentes fases, como na introdução do alimento complementar, no período da modificação da alimentação infantil para mais sólida, na idade pré-escolar, escolar e adolescência.
As crianças sentem prazer em comer?
Comer é uma das primeiras necessidades de uma criança quando ela entra no mundo. Logo, é sim uma fonte de prazer.
O prazer de comer está intimamente ligado às necessidades fisiológicas, ou seja, comemos por sobrevivência. Recém-nascidos e lactentes apreciam muito mais o sabor doce, por ser um indicador gustativo da densidade energética dos alimentos e dão sensação de saciedade.
Os bebês realmente começam a vida com muito poucas preferências inatas de sabor, e uma forte capacidade de aprender a gostar de novos alimentos. Eles conseguem ajustar perfeitamente suas necessidades energéticas, de forma a garantir as suas necessidades corporais (eles sabem até onde conseguem mamar, sem pressão, diferente do bebê que consome o leite artificial e a mãe tenta controlar essa ingestão).
Segundo autores, a introdução dos alimentos é o momento mais importante para aprender sobre novos alimentos, pois é durante este período que os sentidos da criança são subitamente expostos a uma variedade de novos tipos de estimulação.
Crianças menores de 24 meses de idade são mais receptivas a novos alimentos do que as crianças mais velhas. Por isso recomenda-se que os pais introduzam novos alimentos neste momento.
Os primeiros 3 anos de vida, são o período mais sensível para o desenvolvimento de “percepção, cognição, comportamentos e experiências” em relação à comida.
À medida que a criança cresce, essa capacidade de autorregulação começa a diminuir, muitas vezes influenciada pelo ambiente. Normalmente a criança começa a não sentir os seus sinais de fome e saciedade o que pode gerar ansiedade, compulsão, obesidade, dentre outros.
A literatura científica expõe que algumas dimensões do comportamento alimentar, como a regulação da saciedade, são inatas, mas, pelas alterações em consequência do ambiente, das atitudes parentais e de outros fatores fisiológicos, podem associar-se a diferentes estados nutricionais levando à seletividade alimentar e dificultando a condução da neofobia alimentar (que é caracterizada por resistência ou dificuldade em comer e experimentar novos alimentos).
O que dizem as estatísticas?
Estima-se que 25% a 40% das crianças saudáveis apresentam DA em graus menos intensos e que 1/3 dos bebês apresentam algum grau de seletividade alimentar (SA) entre o primeiro e segundo anos de vida. Aproximadamente 80% das crianças com alguma alteração de desenvolvimento neuropsicomotor têm algum grau de DA.
Quando a análise é de crianças com doenças orgânicas relacionadas ao desconforto gastrointestinal e problemas de desenvolvimento, como prematuridade e baixo peso ao nascer, o índice oscila entre 33% e 80%; vale ressaltar que esse grupo é propenso a dificuldades alimentares mais intensas.
Na pesquisa sobre Dificuldades Alimentares na infância conduzida pela editora Abril, em 2020, ficou evidenciado que o início da DA foi em crianças de 1 a 2 anos de idade (36%), seguida pela faixa etária de 2 a 3 anos (26%) e 7 a 11 meses (15%).
As escolhas alimentares que a criança faz nessa fase (0 a 4 anos) vão se perdurar para a adolescência e vida adulta.
Como tratar a seletividade alimentar?
A avaliação e o seguimento da criança com dificuldade alimentar envolve fatores de diferentes causas e consequências. É uma condição que exige uma abordagem pediátrica com ampliação para fatores além da medicina, como: dinâmica familiar, rotina alimentar, funções motoras, habilidades sensoriais e psicoemocionais da criança.
Para alcançar as questões da repercussão de um problema alimentar, o envolvimento de outras disciplinas é fundamental para completar a abordagem de forma integral da criança e de sua família.
Algumas práticas podem ser adotadas para ajudar as famílias no manejo com a seletividade alimentar, como:
- Evitar distrações durante os horários das refeições;
- Manter uma atitude neutra e agradável durante toda a refeição;
- Criar uma rotina alimentar definida, exemplos: limitar a duração da refeição (20-30 minutos), o número de refeições/dia: 4 a 6 refeições/lanches por dia com apenas água nos intervalos)
- Servir alimentos apropriados para a idade;
- Oferecer os alimentos entre 8-15 vezes;
- Estimular a autoalimentação e tolerar “bagunças” apropriadas para a idade.
Conclusão
A família é a responsável pela formação do comportamento alimentar da criança através da aprendizagem social, tendo os pais o papel de primeiros educadores nutricionais.
Neste âmbito, os fatores culturais e psicossociais da família influenciam as experiências alimentares da criança desde o momento do nascimento, dando início ao processo de aprendizagem.
Uma adequada introdução de novos alimentos no primeiro ano de vida, com uma correta socialização alimentar a partir deste período, assim como a oferta de alimentos variados e saudáveis, em um ambiente alimentar agradável, permite à criança iniciar a aquisição das preferências alimentares responsáveis pela determinação do seu padrão de consumo.
Quanto mais complexo o caso da dificuldade alimentar, maior a necessidade de envolvimento de profissionais de diferentes áreas e conhecimentos (Pediatra, Nutricionista, Fonoaudiólogo, Terapeuta Ocupacional, Psicólogo), com a incorporação de equipes ou grupos treinadospara ajuda à criança que não come.
Mas, é importante repetir, a gravidade do problema não tem relação necessariamente com a presença de uma doença específica. A inquietação familiar é essencial para que exista atenção e apoio por parte do profissional de saúde que acolhe esta criança e sua família.
Referências
- Guia de orientações - Dificuldades alimentares/ Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Nutrologia . São Paulo: SBP, 2022. 66 f.
- Kerzner B. Clinical Investigation of Feeding Difficulties in Young Children: A Practical Approach. Clin Pediatr (Phila). 2009;48:960-5.
- Paediatric Food-Based Dietary Guidelines for South Africa: Responsive feeding: establishing healthy eating behaviour early on in life. S Afr J Clin Nutr 2013; 26 (3) (Supplement): S141-149
- Kachani A, Fisberg M, Maximino P. Como Lidar com a Criança que Não Come. Editora Hogrefe, 2022.